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sábado, 19 de julho de 2025

Escrito por em 19.7.25 com 0 comentários

Studio Ghibli (IV)

E vamos a mais um post da série sobre as produções do Studio Ghibli!

Pom Poko: A Grande Batalha dos Guaxinins
Heisei Tanuki Gassen Ponpoko
1994

Antes de mais nada, é preciso explicar que, apesar do que diz o subtítulo e do que aparece nas legendas da versão em português (e talvez na dublagem, mas não tenho certeza, porque jamais assisti dublado), os animais desse filme não são guaxinins, e sim tanukis, canídeos nativos do Japão que lembram guaxinins por ambos terem uma pelagem preta em torno dos olhos parecida com uma máscara, mas que não são parentes deles. No folclore japonês, tanukis (e raposas) são criaturas com poderes místicos, capazes de se assumir outras formas, inclusive de seres humanos, principalmente para causar confusão; para se transformar, os tanukis colocam uma folha verde na cabeça, e sua transformação preferida é em estátua de Ojizo-sama, divindade que costuma ser encontrada em templos budistas. O nome do filme, Pom Poko, é uma referência ao barulho que os tanukis fazem batendo em suas próprias barrigas em um popular poema infantil escrito por Ujo Noguchi em 1919, que se tornou uma cantiga de roda em 1925.

Hayao Miyazaki e Toshio Suzuki teriam a ideia de fazer um filme sobre tanukis em 1992, mas, envolvido com a produção de Porco Rosso, Miyazaki decidiria convidar Isao Takahata para escrever e dirigir o projeto. A princípio, Takahata pensaria em adaptar a história de Heike Monogatari, livro que relata a luta entre os clãs Taira e Minamoto pelo controle do Japão no final do século XII, mas substituindo os humanos por tanukis; como isso estava dando muito trabalho e não estava ficando do jeito que ele queria, ele decidiria perguntar a Miyazaki e Suzuki se, quando eles o convidaram, já tinham algo em mente, ou se queriam simplesmente uma história envolvendo tanukis. Suzuki diria ter pensado em ambientar a história na região de Tama New Town, nos arredores de Tóquio, que, antigamente, contava com uma grande população de tanukis, expulsos de lá após um boom imobiliário, e Miyazaki diria que sua ideia era que os tanukis usassem seus poderes de transformação para tentar frear a invasão dos humanos.

Assim, o filme começa nos anos 1960, quando os tanukis viviam livres nas florestas e com bastante espaço, até começar a construção de Tama New Town, quando eles foram sendo empurrados para espaços cada vez menores. Após um salto no tempo para os anos 1990, quando o filme é efetivamente ambientado, os tanukis de dois clãs rivais, que vivem brigando, percebem que, se não se unirem, Tama New Town ocupará todo o seu espaço, e eles ficarão sem ter onde morar. Sua melhor chance é usar seus poderes de transformação para sabotar as obras, mas eles estão há tanto tempo sem usá-los que os mais jovens sequer sabem como fazê-lo. Os anciões, então, desenvolvem um plano em duas partes: enquanto os jovens são treinados pelos mais velhos para dominar suas transformações e usá-las para atrapalhar o serviço dos humanos e afugentá-los, emissários serão enviados em busca dos grandes mestres da transformação, que vivem em regiões mais afastadas da civilização, e possuem poderes capazes de impedir a expansão dos humanos de uma vez por todas.

Pom Poko seria o primeiro filme com roteiro original de Takahata, e o primeiro do Studio Ghibli com um roteiro original que não fosse de Miyazaki. Os roteiristas de mangá Shigeru Sugiura, Hisashi Inoue e Shigeru Mizuki seriam creditados como "equipe adicional", segundo Takahata, por ele ter se baseado em várias obras deles para criar sua história; embora não tenha adaptado uma história específica, Takahata se inspiraria tanto no trabalho de Mizuki que decidiria incluir no filme um personagem (humano) feito à sua imagem e semelhança.

Ao todo, três equipes de animação seriam usadas no filme, cada uma responsável por um nível de realismo dos tanukis: quando eles não estão "ocultos dos olhos humanos", são extremamente realísticos, como se o filme fosse um documentário; na maior parte do tempo, porém, eles se parecem com animais antropomórficos fofinhos característicos de desenhos animados; exceto quando estão muito felizes ou empolgados, quando seus traços ficam ainda mais simples, ao estilo dos desenhos produzidos para crianças bem pequenas. Pom Poko seria o primeiro filme do Studio Ghibli a usar computação gráfica, embora apenas em algumas cenas e somente o recurso da tinta digital, que facilitava o trabalho dos coloristas e proporcionava maior uniformidade ao filme; e o segundo a fazer referência a filmes anteriores através de personagens: na cena em que os grandes mestres da transformação criam um desfile de youkai ("espíritos"), em meio às criaturas, cruzando a tela rapidamente, podem ser vistos Totoro, montado num pião e segurando um guarda-chuva; Kiki, voando em sua vassoura; a versão de 10 anos de Taeko, nadando como se estivesse em uma piscina; e Porco Rosso, voando em seu avião. Caso alguém esteja se perguntando, o primeiro seria O Castelo no Céu, no qual, em Laputa, são encontrados vários animais idênticos ao que Lorde Yupa deu de presente para Nausicaä em Nausicaä do Vale do Vento.

Pom Poko também seria o primeiro filme do Studio Ghibli a contar com um narrador, com esse papel cabendo ao famoso contador de histórias Kokontei Shincho, e o primeiro no qual um dos personagens "quebra a quarta parede" e fala diretamente com a audiência, numa cena em que o tanuki Ponkichi pede para que as pessoas evitem destruir o habitat natural dos animais nativos de suas regiões. Finalmente, ele é o único do Studio Ghibli até hoje a contar com uma cena gravada com atores de carne e osso: há um momento em que os tanukis estão assistindo televisão e, na tela, aparece um programa no qual um cozinheiro está preparando tempura. Originalmente, esse programa seria feito com animação, como o resto do filme, mas Takahata acharia que o tempura "não parecia delicioso o suficiente", e pediria para que uma cena com atores fosse usada. Ao invés de catar uma de algum outro filme ou comercial, a equipe de produção decidiria filmar uma especialmente para a ocasião, usando a cozinha e um dos cozinheiros do restaurante Kappo Sushi Funawa, no qual eles costumavam almoçar.

Pom Poko estrearia nos cinemas japoneses em 16 de julho de 1994, distribuído pela Toho, e seria um gigantesco sucesso, rendendo 4,47 bilhões de ienes nas bilheterias, se tornando o filme nacional mais assistido no Japão e o segundo filme de animação mais assistido no país naquele ano, atrás apenas de O Rei Leão. A crítica ficaria encantada, elogiando principalmente a qualidade da animação e a mensagem ecológica do filme. Pom Poko ganharia o o prêmio de Melhor Filme de Animação no festival de cinema da Mainichi Shimbun, e seria incrito para concorrer ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, mas não ficaria dentre os finalistas.

Internacionalmente, aliás, o filme sofreria com problemas de distribuição por causa de uma questão inusitada: os tanukis machos têm bolsa escrotal ("saquinho") e, inclusive, conseguem transformá-los em outros objetos usando seu poder de transformação - em uma determinada cena, um dos grandes mestres transforma seu saquinho em um navio e sai navegando com ele por um rio. Essa particularidade faria com que fosse difícil encontrar um distribuidor na Europa, e com que a primeira vez em que Pom Poko estivesse disponível fora do Japão fosse em 2005, quando a Disney o lançaria em DVD nos Estados Unidos, em um combo com Meus Vizinhos, os Yamadas; no ano seguinte, ele seria lançado também em DVD no Reino Unido. A versão Disney conta com vozes, dentre outros, de J.K. Simmons, Olivia d'Abo, Clancy Brown, Tess MacNeille, Brian Posehn, Kevin Michael Richardson e John DiMaggio.

Sussurros do Coração
Mimi wo Sumaseba
1995

Shizuku Tsukishima é uma estudante de 14 anos que mora no subúrbio de Tóquio com seus pais e sua irmã universitária, sendo que seu pai trabalha na biblioteca pública. Introvertida mas muito criativa, Shizuku gosta de escrever poemas, contos e letras de música, mas seu principal hobby é ler, principalmente livros de aventura que pega na biblioteca da escola. Um dia, acidentalmente, ela descobre que todos os livros que ela pega já foram lidos anteriormente pela mesma pessoa, um menino chamado Seiji Amasawa, e começa a imaginar como seria ser amiga de um menino que tem o mesmo gosto literário que ela.

A vida de Shizuku muda num dia em que, levando o almoço para seu pai, ela se distrai com um gato (que mais tarde ela descobre se chamar Moon) e acaba indo parar em um bairro no qual nunca esteve antes, onde descobre uma loja de antiguidades, ficando encantada por conhecer "um lugar onde as histórias começam". Ela faz amizade com o idoso dono da loja, que tem como objeto preferido uma estatueta de um gato, de pé como se fosse uma pessoa e vestindo roupas, que ele chama de Barão. Ao voltar para casa, ela descobre que o neto do dono da loja é um menino com quem ela não se dava bem na escola, e, convivendo com ele, descobre que ele é mais sensível e profundo do que ela imaginava, inclusive sabendo fabricar violinos e tendo o sonho de se tornar um lutier. Da amizade com o senhor e seu neto, Shizuku tira a inspiração para escrever um livro, protagonizado pelo Barão.

Essa é a história de Sussuros do Coração, adaptação do mangá Mimi wo Sumaseba (algo como "ouça com cuidado"), escrito pela autora Aoi Hiiragi e publicado na revista Ribon entre agosto e novembro de 1989, ganhando uma continuação, Mimi wo Sumaseba: Siawase na Jikan ("tempos felizes"), publicada na Ribon Original em agosto de 1995, pouco após o lançamento do filme. Segundo as más línguas, Miyazaki, após a produção de Eu Posso Ouvir o Oceano, ficaria com a ideia fixa de escrever e dirigir ele mesmo uma história de romance adolescente, sem elementos fantásticos, para ser lançada nos cinemas, com o intuito de que Eu Posso Ouvir o Oceano, que estreou diretamente na televisão, não entrasse para a história como o único filme de romance adolescente do Studio Ghibli. Línguas mais maldosas ainda diriam que ele se ressentia por ter planejado escrever e dirigir Eu Posso Ouvir o Oceano, mas sido impedido por Suzuki, que queria que uma equipe jovem assumisse o projeto.

Seja como for, Miyazaki leria o mangá e negociaria com Hiiragi a adaptação, escrevendo ele mesmo o roteiro e planejando dirigi-lo, mas decidindo abrir mão da direção para que essa coubesse a Yoshifumi Kondo, animador que Takahata trouxe da Nippon Animation para trabalhar em Túmulo dos Vagalumes. Considerado extremamente talentoso tanto por Miyazaki quanto por Takahata, Kondo seria treinado pelos dois para se tornar o terceiro diretor principal do Studio Ghibli, e, um dia, sucedê-los; Sussurros do Coração, porém, acabaria sendo seu primeiro e último filme, já que Kondo faleceria prematuramente, aos 47 anos, de um aneurisma na aorta, em 1998.

Como de costume, Miyazaki mudaria algumas coisas na história, para que o filme ficasse mais com a cara do Studio Ghibli; a principal delas seria a introdução na trilha sonora, criada pelo compositor Yuji Nomi, em sua estreia no Studio Ghibli, da canção Take Me Home, Country Roads, de John Denver. Na história, Shizuku faz uma paródia da música, chamada "estradas de concreto", com letra em japonês, que fala sobre o lugar onde ela mora, Tama New Town, e essa paródia tem papel importantíssimo na história, sendo tanto o motivo pelo qual ela desgosta do neto do dono da loja quanto o pelo qual ela se aproxima dele. A letra da paródia seria criada pela filha do produtor Toshio Suzuki, Mamiko, sendo revisada e ajustada na métrica por Miyazaki. A música original em inglês, no filme, é cantada por Olivia Newton-John, e a paródia por Yoko Honna, a dubladora de Shizuku.

Sussuros do Coração seria extremamente elogiado pela beleza dos seus cenários, que mostravam uma Tóquio um pouco diferente da real - no Japão, é considerado desrespeitoso retratar em obras de animação cidades japonesas de forma idêntica a como elas são na realidade - mas ainda assim reconhecível. As antiguidades da loja também seriam bastante inspiradas, algumas copiadas do mangá, outras criadas especialmente para o filme, como uma xilogravura - aquela placa de madeira com uma figura, que depois será coberta de tinta e usada para impressão, bastante usada no Japão, na China e no Brasil, na literatura de cordel - de um violinista, criada pelo filho de Miyazaki, Keisuke, que, na vida real, é xilógrafo.

O filme também chamaria atenção por suas sequências de sonho, aquelas nas quais Shizuku imagina estar dentro da história que está escrevendo, protagonizada por Barão. Essas sequências seriam animadas por uma equipe diferente da que fez o restante do filme, e teria lindíssimos planos de fundo pintados por Naohisa Inoue, autor do conto Hoshi o Katta Hi ("o dia em que eu comprei uma estrela"), que Miyazaki adaptaria para um curta, em exibição exclusiva no Museu Ghibli desde 2006. O sucesso de Hoshi o Katta Hi chamaria antenção para o trabalho de Inoue, que seria convidado para escrever e dirigir Iblard Jikan, filme lançado diretamente em DVD e Blu-ray em 2007, composto por várias cenas do mundo imaginário de Iblard, criado por Inoue, animadas pelos profissionais do Studio Ghibli e com trilha sonora de Kiyonori Matsuo, sem enredo ou diálogos.

Sussuros do Coração seria o primeiro filme na história do cinema japonês a usar o formato de som Dolby Digital; para aproveitar a ocasião, a banda japonesa Chage and Aska faria uma parceria com o Studio Ghibli, que criaria em animação um videoclipe para a música On Your Mark, exibido antes de cada sessão do filme, que estrearia nos cinemas japoneses em 15 de julho de 1995, distribuído pela Toho. Mais uma vez, o filme seria o nacional mais assistido no Japão naquele ano, rendendo cerca de 3,15 bilhões de ienes de bilheteria. A crítica também ficaria encantada, considerando-o "uma bela e provocativa história adolescente sobre anseios e aspirações".

No exterior, o filme só começaria a ser lançado a partir de 2003, acreditem ou não, por problemas de licenciamento de Take Me Home, Country Roads, que Miyazaki não aceitava remover ou substituir. Na Europa e Ásia o filme teria um lançamento limitado nos cinemas - e, mesmo assim, somando todas as sessões fora do Japão, renderia mais 34,9 milhões de dólares - mas, nos Estados Unidos, seria lançado diretamente em home video pela Disney em 2006, com a dublagem trazendo Brittany Snow como Shizuku. Embora o filme japonês tenha o mesmo título do mangá, as versões internacionais têm como título versões nos idiomas locais de Sussuros do Coração (por exemplo, em inglês o título é Whisper of the Heart, e em italiano é I Sospiri del mio Cuore); esse título também seria criado pelo Studio Ghibli, que considerou que o original seria de difícil tradução, e não queria que o filme tivesse um título diferente em cada lugar.

Em 2022, Sussuros do Coração ganharia uma versão com atores de carne e osso, produzida pela Sony e estrelada por Nana Seino (a Sunmi de Tokyo Tribe) e Tori Matsuzaka (o Shinken Red de Samurai Sentai Shinkenger). Com direção de Yuichiro Hirakawa, o filme é ambientado dez anos após os eventos do anime, e traz uma Shizuku de 24 anos trabalhando como editora de livros infantis e tentando fazer funcionar um relacionamento à distância. A produção começaria em janeiro de 2020, mas teria de ser interrompida por causa da pandemia, o que atrasaria a estreia em dois anos em relação à data originalmente prevista. Talvez para evitar problemas, a música principal do filme não é Take Me Home, Country Roads, e sim Tsubasa o Kudasai, cantada por Anne Watanabe. O filme seria um sucesso de público, sendo o quarto mais assistido no Japão em 2022, mas um fracasso de crítica, que o consideraria extremamente nostálgico e com roteiro fraco e previsível.

Para terminar, vale registrar que Sussuros do Coração é o único longa-metragem do Studio Ghibli que ganharia uma "sequência" (na verdade, um spin-off, mas o próprio Studio Ghibli chama de sequência ou continuação) na forma também de um longa metragem: O Reino dos Gatos, de 2002, que nós veremos no próximo post dessa série.

Princesa Mononoke
Mononoke Hime
1997

Em 1980, logo após finalizar Lupin III: O Castelo de Cagliostro, Miyazaki começaria a trabalhar em uma versão da fábula A Bela e a Fera ambientada no Japão Feudal, na qual a "fera" seria um mononoke, espírito animal vingativo que normalmente protege uma floresta, lago ou outra região natural, e a "bela" seria uma filha de um nobre que, após ele desrespeitar o espírito, se veria forçada a se casar com ele para evitar sua vingança. Miyazaki apresentaria o projeto a várias produtoras, mas nenhuma se interessaria, e ele acabaria usando o que já tinha criado no mangá Shuna no Tabi, lançado em 1983, em volume único, pela Tokuma Shoten.

Após a fundação do Studio Ghibli, Miyazaki decidiria revisitar o conceito, mas, sem querer fazer uma adaptação de Shuna no Tabi, ele decidiria se inspirar em Hojoki, obra escrita em 1212 por Kamo no Chomei, que, diante do turbilhão político e de diversos desastres natuais que ocorreram na época, escreveu sobre a efemeridade da vida e a vulnerabilidade da cultura japonesa. Em determinado momento, Miyazaki acharia que o projeto estava se distanciando demais do originalmente pretendido e que não faria sucesso comercialmente e o abandonaria completamente, mantendo, entretanto, sua vontade de fazer um filme ambientado no Japão Feudal.

Em agosto de 1994, depois de concluir o mangá de Nausicaä do Vale do Vento, Miyazaki decidiria retomar os trabalhos em seu filme de A Bela e a Fera, mas adicionando a ele ideias com as quais havia já trabalhado em Meu Amigo Totoro e Porco Rosso. Em dezembro, ele abandonaria tudo novamente, dizendo estar com bloqueio de escritor, e decidiria se dedicar à direção do videoclipe On Your Mark, para arejar as ideias. Em abril de 1995, ele finalmente decidiria retomar a pré-produção, levando toda a equipe de direção de arte para visitar a ilha de Yakushima, relativamente intocada pelo homem, para obter inspiração para os cenários do filme; o diretor de arte Kazuo Oga também decidiria visitar outro local, as montanhas de Shirakami-Sanchi.

Após essa viagem, a história finalmente começaria a se desenrolar na mente de Miyazaki, que começaria a preparar os storyboards - ainda assim, o filme teria a produção mais longa dentre todos do Studio Ghibli, pois frequentemente Miyazaki decidia mudar alguma coisa com a qual não estava plenamente satisfeito. A produção da animação começaria em julho de 1995, sem um roteiro pronto: usando uma técnica comum no mangá, Miyazaki iria inventando a história conforme desenhava os storyboards, o que fez com que toda a história só estivesse completa em janeiro de 1997, e com que as filmagens só fossem concluídas em junho, menos de um mês antes da data prevista para a estreia nos cinemas, que Miyazaki se recusou a adiar.

Essa produção tão longa faria com que Princesa Mononoke se tornasse o filme japonês de animação mais caro de todos os tempos, com custo final de 2,35 bilhões de ienes. Em uma entrevista dada quando o orçamento passou de 2 bilhões, Miyazaki declararia não se importar se o Studio Ghibli fosse à falência, desde que ele conseguisse fazer o filme do jeito que queria. Parte do custo exagerado do filme veio da ideia de Miyazaki de contratar nada menos que cinco diretores de arte, algo sem precedentes na indústria da animação mundial, cada um responsável por uma área em específico - um cuidaria apenas das cenas na floresta, outro apenas das cenas na fortaleza, outro somente das cenas ambientadas durante a noite. O nível de detalhe dos planos de fundo e dos personagens coadjuvantes também seria algo sem precedentes, consumindo mais de 144 mil células de acetato, 80 mil delas retocadas pessoalmente por Miyazaki, que queria que elas ficassem mais detalhadas ainda.

Além de todo esse esforço na animação tradicional, Princesa Mononoke também seria o segundo filme do Studio Ghibli a usar computação gráfica, utilizando principalmente a técnica da tinta digital, usada dali por diante em todos os filmes subsequentes do Studio Ghibli. Seria o colorista veterano Michiyo Yasuda quem convenceria Miyazaki a investir em um departamento de computação gráfica para o Studio Ghibli, inaugurado em 1996; tendo usado a técnica da tinta digital em Pom Poko, Yasuda acreditava que as técnicas de pintura usadas pelo Studio Ghibli já estavam ultrapassadas, e que insistir nelas poderia levar os filmes a ficarem com visual datado e afastar o público. Após a inauguração do departamento de computação gráfica, os animadores aproveitariam para testar outras técnicas variadas de animação por computação; estima-se que cerca de 5 minutos (não contínuos) de Princesa Mononoke, incluindo o primeiro demônio que aparece no filme, tenham sido totalmente produzidos por computação gráfica, sem nenhum traço de animação tradicional.

Miyazaki era conhecido por detestar e renegar o uso da computação gráfica na animação, então foi uma grande surpresa para todos do meio quando foi anunciado seu uso em Princesa Mononoke. Para que a animação por computação gráfica não destoasse da animação tradicional, seria usado um programa que combinaria as duas, desenvolvido pela Microsoft especificamente a pedido do Studio Ghibli. A falta de know how dos animadores do Studio Ghibli também faria com que a produção das cenas em computação gráfica fossem supervisionadas por animadores de outro estúdio mais acostumado com o processo, o Toyo Links. O resultado final ficaria tão harmonioso que os deuses alternam entre versões digitais e tradicionais sem que ninguém consiga identificar com clareza quando é feita a transição.

A produção do filme seria tão desgastante que muitos dos animadores pediriam demissão após sua conclusão; o próprio Miyazaki chegaria a anunciar sua aposentadoria, alegando que jamais iria conseguir trabalhar em outro filme, mas mudaria de ideia em 1998, após a morte de Yoshifumi Kondo, que ele considerava seu sucessor. Apesar de tudo isso, Princesa Mononoke seria considerado um divisor de águas para a carreira de Miyazaki, com seus filmes posteriores sendo considerados muito mais maduros e artísticos; há quem considere, por outro lado, que o filme restringiria sua carreira, já que o diretor se retiraria da vida pública após seu lançamento, e jamais voltaria a fazer os filmes de aventura ao estilo de Porco Rosso que fazia antes, como se achasse que isso seria um retrocesso.

O protagonista de Princesa Mononoke é Ashitaka, príncipe do povo Emishi, que, um dia, é atacado por um demônio. Ao deter o ataque, Ashitaka descobre que o demônio na verdade era Nago, um espírito protetor da floresta, que foi corrompido. Essa corrupção se infiltra no braço de Ashitaka, que passa a ter vontade própria, e acabará se alastrando pelo resto de seu corpo e transformando-o também em demônio. Ashitaka então decide rumar em uma jornada para descobrir a fonte da corrupção de Nago, imaginando que, conhecendo sua causa, poderá reverter o processo.

Durante a jornada, Ashitaka conhece o monge Jigo, que finge ser seu amigo, e vai parar numa fortaleza controlada por Lady Eboshi, que dá abrigo a prostitutas, leprosos e outros párias, em troca de eles trabalharem em sua fábrica de armas de fogo - que ela pretende usar para destruir todos os espíritos protetores da floresta, tendo sido ela a responsável pela corrupção de Nago. Enquanto está na fortaleza, Ashitaka conhece San, humana criada como filha por outro espírito protetor, Moro, que planeja expulsar Lady Eboshi de lá e destruir sua fábrica. San leva Ashitaka até o Espírito da Floresta, que salva sua vida, mas, ao fazê-lo, inadvertidamente coloca sua própria existência em risco, já que o Imperador incumbiu Jigo e Lady Eboshi de cortar a cabeça do Espírito da Floresta e levá-la até ele, acreditando que ela confere a seu portador a imortalidade.

Princesa Mononoke seria mais um dos filmes do Studio Ghibli que coloca a civilização e a natureza em conflito, com forte mensagem ecológica e a favor do ambientalismo, mas com a distinção de não mostrar civilização e natureza como opostos, nem progresso e tecnologia como malignos - o vilão, mais uma vez, é a ganância, não a modernidade. Ashitaka transita entre os dois mundos sem condenar nenhum, e serve de mediador entre os interesses de Lady Eboshi e de San, até descobrir que a primeira tem um propósito egoísta. Essa dicotomia incomum faria com que o filme fosse objeto de vários estudos cinematográficos, literários e até mesmo sociológicos, com artigos científicos que usam o filme como exemplo ou ponto de partida sendo publicados no mundo inteiro. Miyazaki diria que pretendia fazer uma crítica à forma como os problemas ambientais são abordados no Japão, que praticamente exclui os seres humanos da equação, dando a entender que a única forma de a natureza ser preservada é acabando com a civilização.

O filme também ficaria famoso por tocar em pontos espinhosos para a cultura japonesa, como o minzoku, a teoria de que a cultura do Japão é única e derivada de uma só etnia, o povo Yamato; pertencendo ao povo Emishi, antepassado dos Ainu, povo indígena que vive no norte do Japão e é considerado de segunda classe por muitos dos japoneses, Ashitaka é tratado com desdém ou desconfiança pela maior parte dos demais personagens, inclusive os que moram na fortaleza de Lady Eboshi, que dá abrigo a todo tipo de pária - algo que coloca em xeque até mesmo o papel de Eboshi como vilã. Apesar de ser um "filme de época", Princesa Mononoke é essencialmente um filme de fantasia, já que muitos de seus elementos não possuem correspondentes históricos - a fábrica de Lady Eboshi seria inspirada em instalações semelhantes encontradas na China, mas jamais presentes no Japão, e as armas de fogo são as armas preferenciais dos personagens, algo que não ocorria no Japão Feudal.

Muitos críticos também veriam um paralelo entre Princesa Mononoke e o Épico de Gilgamesh, no qual a destruição de um deus leva à ruína da humanidade. Em 1988, o autor japonês Takeshi Umehara escreveria uma peça teatral chamada Gilgamesh, e a ofereceria para que Miyazaki adaptasse; Miyazaki leria o roteiro e não se interessaria, mas diria em entrevistas ter sido possível que ele tivesse inconscientemente incluído temas presentes em Gilgamesh no enredo de Princesa Mononoke durante a produção. Finalmente, Princesa Mononoke chama atenção por ser muito mais tenso e sombrio do que os demais trabalhos de Miyazaki - e por não ter nenhuma sequência na qual os personagens voam, algo que era uma marca registrada do diretor.

A campanha de marketing de Princesa Mononoke seria capitaneada por Suzuki, que planejava valorizar a marca do Studio Ghibli - até então, no Japão, os filmes eram anunciados como "um filme de Hayao Miyazaki", ou "um filme de Isao Takahata", com Princesa Mononoke sendo o primeiro a ser anunciado como "um filme do Studio Ghibli". Suzuki também mudaria o nome do filme, durante a pós-produção; até ele mudar, o título oficial era A Lenda de Ashitaka, que o produtor considerava muito básico e pouco interessante - Miyazaki seria contra a mudança, alegando que não há nenhuma princesa chamada Mononoke no filme, e achando que as plateias não entenderiam que é uma referência ao fato de Sen ter sido criada por um espírito. Considerando fundamental que o filme fosse um gigantesco sucesso, já que foi caríssimo, Suzuki conseguiria patrocínios para que a campanha de marketing fosse mais cara até do que a produção, consumindo 2,6 bilhões de ienes, algo também sem precedentes no cinema japonês. Ele também conseguiria nada menos que 70 sessões para plateias de testes, não para que eles sugerissem mudanças, mas para que fizessem propaganda boca a boca do filme - a título de comparação, o recordista prévio em sessões para plateias de teste no Japão era Porco Rosso, com 23.

Princesa Mononoke estrearia no Japão em 12 de julho de 1997, distribuído pela Toho, em 260 das 1800 salas de cinema disponíveis, e, somente no primeiro final de semana, renderia 1,5 bilhão de ienes. No total, o filme ficaria em cartaz por um ano e arrecadaria 11,3 bilhões de ienes, sendo até hoje o filme de maior bilheteria da história do cinema japonês - estima-se que um décimo da população do Japão foi ver esse filme nos cinemas. A crítica receberia muito bem o filme, elogiando principalmente sua identidade visual; bizarramente, uma das principais críticas negativas seria a de que as personagens femininas "não tinham sex appeal". Princesa Mononoke seria eleito o terceiro melhor filme de animação de todos os tempos pela revista britânica Empire, e ganharia os prêmios de Melhor Filme e de Melhor Filme de Animação no festival de cinema da Mainichi Shimbun e de Filme do Ano pela Academia Japonesa de Cinema.

Através de um acordo entre a Tokuma e a Disney, o filme seria passado para a Miramax, para dublagem e distribuição nos Estados Unidos. Princesa Mononoke seria o primeiro filme a ter de se valer da política estabelecida por Miyazaki de que os filmes do Studio Ghibli não podem sofrer edição ou cortes para serem exibidos internacionalmente: quando Harvey Weinstein, da Miramax, perguntou se poderia editá-lo, para diminuir sua duração (que é de 2 horas e 14 minutos) e remover cenas que os pais norte-americanos poderiam considerar violentas, recebeu de presente de Suzuki uma katana cenográfica com uma inscrição na lâmina que dizia "sem cortes". Weinstein escolheria o escritor Neil Gaiman para adaptar o roteiro após sua tradução, encontrando equivalentes que os norte-americanos compreendessem para termos do folclore japonês, como os próprios mononoke, que viraram "deuses". Em entrevistas posteriores, Gaiman diria que, inicialmente, Weinstein chamaria o diretor Quentin Tarantino, que recusaria e o indicaria, e que ele mesmo não estaria interessado até assistir a uma cena do filme na qual está chovendo e uma pedra está se molhando, tão bela que ele jamais havia visto algo parecido num filme de animação. Assim como ocorreu com Porco Rosso, a versão em inglês de Princesa Mononoke tem falas que não estão presentes no original japonês, proferidas quando os personagens não estão na tela, que, aqui, servem para explicar conceitos da cultura japonesa às plateias norte-americanas.

A adaptação de Gaiman seria acusada de tentar anular as características culturais do filme, transformando-o em um filme de fantasia genérico ao invés de uma história japonesa - toda vez que os personagens falam "saquê", por exemplo, na versão norte-americana eles falam "vinho". Weinstein faria toda a campanha de marketing norte-americana como se o filme fosse um "filme de arte", e não um anime, atrasando a data de estreia para que ele fosse exibido antes, com a dublagem da Miramax, no Festival Internacional de Cinema de Berlim de 1998, e só estreasse nos cinemas dos Estados Unidos em 26 de setembro de 1998, sendo lá um sucesso de crítica, mas um gigantesco fracasso de bilheteria. A dublagem em inglês conta com Billy Crudup como Ashitaka, Claire Danes como San, Minnie Driver como Lady Eboshi, Billy Bob Thornton como Jigo, e Gillian Anderson como Moro. Na Europa, o filme seria lançado pela Disney, mas exclusivamente em home video.

Em abril de 2013, o Studio Ghibli faria uma parceria com a companhia de teatro Whole Hig Theatre para montar uma adaptação do filme para os palcos, que ficaria em cartaz em Londres no primeiro semestre, e em Tóquio no segundo. James Cameron citaria o filme como uma de suas influências para fazer Avatar, e o videogame The Legend of Zelda: Breath of the Wild também é considerado como tendo sido grandemente influenciado. O filme também é considerado, junto com Neon Genesis Evangelion, como um dos responsáveis por uma onda de artigos científicos que passaram a discutir temas presentes nos anime e sua relação com a sociedade.
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domingo, 16 de dezembro de 2018

Escrito por em 16.12.18 com 1 comentário

Deuses Americanos

Hoje o átomo completa OITOCENTOS posts. Digo mais uma vez que jamais esperava, e cada vez que um número expressivo desses é alcançado, fico mais e mais espantado. Juro, quando comecei a escrever o blog, e até mesmo quando mudei seu estilo para falar sobre as coisas que eu gosto, deixando as divagações de lado, imaginei que ele iria durar uns três anos, que eu iria escrever uns duzentos posts, e depois iria perder o interesse, ficar sem tempo, não arrumar mais assunto, ou qualquer coisa desse tipo, e ele seria encerrado. Hoje, mais de quinze anos depois de ter começado, já não sei mais se um dia vou parar.

De qualquer forma, quando cheguei lá pelo post 790, comecei a pensar sobre qual poderia ser o assunto do post 800. Tive até algumas boas ideias, mas, infelizmente, não pude chegar a botar em prática nenhuma delas - uma das razões, inclusive a mesma razão pela qual o post 801 só será publicado no ano que vem, é que, nesse segundo semestre, eu realmente acabei ficando com menos tempo do que gostaria para caçar assuntos e escrever posts, de forma que até o meu planejamento atrasou: já há um bom tempo, eu escrevo os posts com quatro ou cinco semanas de antecedência, enquanto esse eu estou escrevendo no primeiro fim de semana de dezembro, ou seja, com apenas duas. Com o planejamento atrasado e o post 800 se aproximando, fui obrigado a usar o Plano B: pegar um assunto que estava reservado para virar post após o 800 e transformá-lo no 800.

Por sorte, eu tinha um assunto extremamente adequado: tirando o post 100, no qual resolvi fazer um "post comemorativo", todos os meus "posts centenários" antes do 500, que também foi comemorativo (assim como, se Deus quiser, será o 1.000), foram sobre literatura: o 200 foi sobre O Senhor dos Anéis, o 300 sobre Tormenta (que a rigor é um RPG, mas, como usa livros e tem contos ambientados no cenário, não deixa de ser literatura), e o 400 sobre As Crônicas de Nárnia. Pois bem, eu tinha um assunto da categoria literatura reservado para virar post, e achei que teria super a ver colocá-lo no post 800 - afinal, é um dos melhores livros que eu já li na vida, escrito por um dos meus autores preferidos. Trata-se de Deuses Americanos, o tema do octocentésimo post do átomo!

Deuses Americanos foi escrito por Neil Gaiman, que tem um post inteirinho só pra ele aqui no átomo caso você queira saber mais sobre esse autor tão fascinante. Inglês, Gaiman se mudou para os Estados Unidos em 1992, aos 31 anos de idade. Fascinado por um lugar que, segundo ele mesmo, não conseguia compreender, ele pensou em escrever um romance no qual pudesse descrever o país, com sua cultura e suas idiossincrasias, para, no processo, tentar entender o que fazem os EUA serem os EUA. Alguns anos depois, durante uma viagem à Islândia, ele teria a ideia sobre como deveria ser esse livro, e enviou uma carta à sua editora, no qual usava o título "Deuses Americanos", que seria provisório, até que ele pensasse em um melhor. A editora, porém, criou uma capa para o livro, e a enviou a Gaiman para aprovação. Ele gostou tanto da capa que não tinha mais como mudar o nome - de fato, gostou tanto da capa que a pendurou na parede para inspiração: o livro estava ali, só faltava escrevê-lo.

Gaiman, então, se lançou a uma viagem pelo interior dos Estados Unidos, conhecendo locais turísticos, comendo comidas típicas, tentando absorver o máximo do modo de vida do povo norte-americano. Enquanto viajava, ele escrevia, sempre que tinha tempo, tentando fazer com que a viagem do protagonista fosse idêntica à sua própria; ele não escreveria sobre nenhum lugar que não tivesse visitado, e, quando ficasse em dúvida sobre em que direção a viagem do protagonista deveria seguir, escrevia uma espécie de "capítulo extra" - o livro está cheio deles - que contava histórias secundárias, com outros personagens, retomando a história principal quando a dúvida se dissipasse. Por sugestão da editora, Gaiman criou um blog, no qual documentava todo o processo de escrita do livro; após o lançamento, esse blog se transformaria no blog oficial do autor, e existe até hoje, com Gaiman frequentemente o atualizando, falando sobre variados assuntos.

Gaiman escreveria um primeiro rascunho, bem grande e bastante cru, durante suas viagens. Então, retornaria à sua casa e e escreveria um segundo rascunho, menor e mais coeso, o qual entregaria à editora. A editora achou que o livro estava grandioso e sinuoso demais, e pediu para que ele desse uma reduzida, levando a um terceiro rascunho. Esse, sim, seria publicado, em 19 de junho de 2001, pela William Morrow, com o título original de American Gods. Imediatamente após o lançamento, Gaiman sairia em uma turnê, para promover o livro e dar autógrafos, por várias cidades dos Estados Unidos; curiosamente, a primeira parada dessa turnê seria em Nova Iorque, na livraria Border Books, no World Trade Center. Gaiman chegaria em casa, de volta da turnê, justamente no dia 11 de setembro de 2001, quando o World Trade Center e a Border Books seriam destruídos para sempre.

Deuses Americanos foi o primeiro livro controverso escrito por Gaiman: poucas pessoas gostaram ou desgostaram um pouquinho, a maioria ou adorou, ou detestou de verdade - com as duas principais críticas, ora vejam só, sendo as de que o livro "não era americano o bastante" ou que "era americano demais". Apesar disso, o livro foi um gigantesco sucesso, ganhando quatro dos principais prêmios da literatura mundial: o Hugo Award e o Nebula Award, dedicados a obras de ficção científica, ambos na categoria Melhor Romance; o Bram Stoker Award, dedicado a obras de horror, também na categoria Melhor Romance; e o Locus Award, na categoria Melhor Romance de Fantasia - uma prova de que o livro talvez fosse tão controverso que nem mesmo os críticos conseguiram definir em qual estilo ele melhor se encaixava.

O protagonista de Deuses Americanos é Shadow Moon (que, evidentemente, não é o mesmo de Kamen Rider Black), que, após passar anos na prisão por ter participado de um assalto a um banco, consegue sair em liberdade condicional. Seu maior desejo é rever sua esposa, Laura, mas uma série de circunstâncias inesperadas faz com que ele passe a trabalhar como segurança para o misterioso Sr. Wednesday, o qual conhece durante o voo de volta para sua cidade natal. Wednesday vive de trambiques, e está visitando vários "amigos antigos" para convencê-los a se unir a ele para enfrentar uma "tempestade" que está por vir. A maioria dos amigos de Wednesday, entretanto, não está interessada, e tem de ser convencida, muitas vezes por Shadow.

O nome do livro é Deuses Americanos porque Wednesday e seus amigos - como o carrancudo e irritadiço Czernobog, o falastrão e piadista Sr. Nancy, e a sensual Bilquis - são, na verdade, aspectos de deuses de várias mitologias diferentes, trazidas aos Estados Unidos pelos imigrantes que os adoravam em seus países de origem. A modernidade, entretanto, levou ao surgimento de novos deuses - como o deus da internet, a deusa da televisão e os deuses do mercado financeiro - que se opõem aos deuses antigos, considerando-os ultrapassados e sem lugar no mundo atual. A tal tempestade à qual Wednesday se refere seria um ataque final dos novos deuses aos antigos, visando exterminá-los e tomar seu lugar.

Pouco após o lançamento de Deuses Americanos, os dois sócios da editora inglesa Hill House negociariam com a William Morrow o lançamento de uma "edição especial" do livro no Reino Unido - onde a versão original do livro havia sido lançada, também em junho de 2001, pela editora Headline. Essa negociação se daria sem a participação de Gaiman, e, segundo ele, "se pretendia um milagre da arte da produção de livros". Pouco à vontade para executar as ideias dos editores, ele lhes perguntaria se não prefeririam relançar o livro com seu texto original, sem os cortes feitos a pedido da William Morrow. Os sócios da Hill House aceitariam, mas a tarefa de reincorporar as partes descartadas ao texto efetivamente publicado se mostraria mais difícil do que Gaiman havia previsto, primeiro porque ele havia tido que adequar o texto às remoções após fazê-las, segundo porque havia feito modificações de última hora nas provas de revisão, que faziam com que muitas das partes removidas já não encaixassem onde deveriam. Ainda assim, Gaiman, com a ajuda de Pete Adkins, um dos sócios da Hill House, reincorporou o máximo de trechos inicialmente descartados que pôde, e ainda inseriu alguns novos, para que a edição especial ficasse com cerca de doze mil palavras a mais que a original.

A Edição Especial de Deuses Americanos seria lançada pela Hill House em 2003, em uma tiragem de 750 exemplares de capa dura e numerados - bastante caros, por sinal. Na ocasião do décimo aniversário do lançamento do livro original, em junho de 2011, a William Morrow e a Headline relançariam a Edição Especial, dessa vez com o nome de Edição Preferida do Autor, com capa brochura, tiragem ilimitada (e, consequentemente, sem numeração), e preço mais acessível. Essa é a versão que atualmente pode ser encontrada aqui no Brasil, lançada pela Editora Intrínseca.

Além dessas duas versões, Deuses Americanos ainda ganharia uma "Edição Especial de Colecionador", lançada pela editora The Folio Society em março de 2017. Essa nova edição não traz adições, apenas pequenas correções e modificações no texto em nome da fluidez e da coerência, e, assim como a Edição Especial limitada da Hill House, só foi lançada no Reino Unido (pelo menos por enquanto). Após seu lançamento, Gaiman descreveria a edição como "o texto mais limpo que jamais existiu".

Também em 2017, Deuses Americanos ganharia uma versão em quadrinhos, lançada pela editora Dark Horse. Até agora, foram lançadas duas minisséries, Deuses Americanos: Sombras (American Gods: Shadows), que adapta a primeira das três partes do livro, em nove edições publicadas entre março e novembro daquele ano, com arte de P. Craig Russell, Scott Hampton, Walter Simonson, Colleen Doran e Glenn Fabry, e pode ser encontrada no Brasil em edição encadernada; e American Gods: My Ainsel, que adapta a segunda parte do livro, em oito edições lançadas entre março e novembro de 2018, com arte de P. Craig Russell, Scott Hampton e Mark Buckingham. A terceira e última parte deverá ser adaptada em mais uma minissérie, a ser lançada em 2019.

Ainda em 2017, estrearia no canal por assinatura Starz uma série de TV inspirada em Deuses Americanos (que usa o nome original do livro, American Gods, já que aparentemente desistiram de traduzir títulos de séries aqui no Brasil). A primeira temporada teve oito episódios, exibidos entre 30 de abril e 18 de junho, e contou com Ricky Whittle como Shadow, Emily Browning como sua esposa Laura, Ian McShane como o Sr. Wednesday, Crispin Glover como o Sr. World, Yetide Badaki como Bilquis, Pablo Schreiber como Mad Sweeney, Bruce Langley como o deus da internet, Gillian Anderson como a deusa da televisão, Peter Stormare como Czernobog, Orlando Jones como o Sr. Nancy, e Kristin Chenoweth como Easter, dentre outros. A primeira temporada adapta mais ou menos a primeira parte do livro, com alguns eventos da segunda parte intercalados. Uma segunda temporada, que adaptará o restante da segunda parte, está prevista para estrear em março de 2019; o atraso se deu devido a problemas na produção, dentre eles a saída dos dois produtores e de Anderson, substituída pela atriz sul-coreana Kahyun Kim.

Em 20 de setembro de 2005, Deuses Americanos ganharia uma espécie de spin off, o livro Os Filhos de Anansi (Anansi Boys, no original), lançado também pela William Morrow. Os protagonistas de Os Filhos de Anansi são os dois filhos do Sr. Nancy, o mortal Fat Charlie e o semideus Spider, que se conhecem por acaso quando Charlie, que vive em Londres, tem de viajar até a Flórida, nos Estados Unidos, para o funeral do pai. Mais carregado de humor do que Deuses Americanos, Os Filhos de Anansi é, segundo Gaiman, "uma história fantástica e bem-humorada sobre relações familiares, profecias terríveis, divindades vingativas e aves muito malignas".

Curiosamente, Gaiman teria a ideia para escrever Os Filhos de Anansi antes mesmo de começar a trabalhar em Deuses Americanos, mas, após receber a capa desse último e sair em sua viagem, ele decidiria incluir o Sr. Nancy em Deuses Americanos e deixar Os Filhos de Anansi para depois. Os Filhos de Anansi também ganharia o Locus Award de Melhor Romance de Fantasia, e também seria indicado ao Hugo Award de Melhor Romance (de ficção científica, vejam só), mas, a pedido do próprio Gaiman, não concorreria - os vencedores do Hugo são determinados por votação popular, então um nome forte como o de Gaiman tem mais chances de ganhar que o de um novato, e Gaiman, que já tinha três Hugo (um por Deuses Americanos em 2001, um por Coraline, de 2002, e um pelo conto A Study in Emerald, de 2004), achou que seria preferível dar a chance de ganhar o prêmio a algum ator novo, o que não aconteceu, com o prêmio indo para Robert Charles Wilson, cujo primeiro romance foi publicado em 1986, e que já havia concorrido em 1999, 2001 (quando perdeu para Deuses Americanos) e 2004 (e concorreria e perderia mais uma vez em 2010); pelo menos, mesmo não sendo ele um novato, foi o primeiro prêmio da carreira de Wilson.

Gaiman também escreveria dois contos estrelados por Shadow: The Monarch of the Glen, ambientado dois anos após Deuses Americanos, publicado na coletânea Legends II: New Short Novels by the Masters of Modern Fantasy, lançada em 2003, e que também conta com contos de George R.R. Martin (de As Crônicas de Gelo e Fogo), Orson Scott Card (de O Jogo do Exterminador) e Terry Brooks (de Shannara), dentre outros; e Cão Negro, ambientado três anos após o livro, e publicado na coletânea de contos de Gaiman Alerta de Risco, lançada em 2015.

Em uma entrevista para a Mtv em 2011, Gaiman declarou ter interesse em escrever uma continuação direta para Deuses Americanos, e que pensou nisso inclusive enquanto estava escrevendo o livro; essa sequência, segundo ele, seria focada nos novos deuses. Até hoje, porém, não há notícias sobre se ele realmente a estaria escrevendo, ou mesmo se continua com essa ideia.
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segunda-feira, 30 de abril de 2018

Escrito por em 30.4.18 com 1 comentário

The Sandman

Neil Gaiman é um de meus escritores favoritos. Como quase todo mundo da minha idade, eu o conheci não através de um livro, mas de The Sandman, uma revista em quadrinhos da qual Gaiman era criador e roteirista, publicada pela DC Comics entre 1989 e 1996, que, aqui no Brasil, foi lançada em meados da década de 1990, quando eu estava em plena adolescência. Confesso que, na época, eu não dava muita bola para The Sandman, preferindo histórias em quadrinhos de super-heróis, mas cheguei a ler várias edições, principalmente porque um dos meus melhores amigos e minha namorada da época ambos se amarravam - eu pegava emprestado deles para ler, inclusive, assim como pegava emprestado com essa namorada histórias de outra criação de Gaiman, Os Livros da Magia, da qual eu gostava bem mais. Ao longo dos anos, porém, eu fui conhecendo mais sobre as obras de Gaiman, lendo seus livros, até que resolvi reler The Sandman, e aí, talvez por já ter mais maturidade, talvez por já estar mais familiarizado com seu estilo, gostei bem mais. Essa semana, conversando com uma amiga sobre o personagem, achei que seria legal fazer um post sobre a revista. Ei-lo. Hoje é dia de The Sandman no átomo.


Antes de mais nada, cabe dizer que o nome do personagem não é "Sandman", The Sandman é somente o nome da revista. O personagem mais famoso dessa revista, o qual muita gente costuma chamar de "Sandman", se chama Sonho, mas é conhecido por uma infinidade de outros nomes, como Morfeu, Oneiros, Kai'ckul e até mesmo Devaneio (por uma razão que eu vou explicar depois). Sonho não é humano, nem deus, sequer um ser vivo, e sim a personificação do sonhar, sendo também membro de um grupo de entidades conhecidos como Perpétuos, todos irmãos entre si. A revista se chama The Sandman por dois motivos: o primeiro é que sandman, em inglês, é o "homem da areia", entidade folclórica que joga areia nos olhos das pessoas para que elas durmam - que pode ser visto em um famoso desenho animado do Pluto, e é referenciado na música Enter Sandman, do Metallica. O segundo motivo é que, inicialmente, a revista The Sandman criada por Gaiman era para ser o relançamento de outra revista chamada The Sandman, protagonizada por um personagem totalmente diferente.

Na Era de Ouro dos quadrinhos, lá pelas décadas de 1930 e 1940, a DC tinha vários personagens que demoraram a fazer a transição para a Era de Prata. Um desses personagens era conhecido como Sandman - esse sim se chamava Sandman - e era uma espécie de detetive que tinha sonhos premonitórios e usava como arma uma pistola de gás sonífero; seu uniforme consistia de terno, gravata, chapéu e uma máscara de gás, talvez para se proteger de sua própria arma. Criado por Gardner Fox e Bert Christman, seu nome verdadeiro era Wesley Dodds, e ele estrearia na Adventure Comics número 40, de julho de 1939. Em dezembro de 1940, ele se tornaria membro fundador da Sociedade da Justiça da América, e, em 1946, junto com vários outros heróis da Era de Ouro, sairia de cena, devido, principalmente, a baixas vendas. A DC tentaria introduzi-lo na Era de Prata vinte anos depois, na Justice League of America 46, de julho de 1966, mas, ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980, ele faria apenas aparições eventuais, sem jamais se firmar em um título ou uma equipe. Dodds só alcançaria o sucesso na década de 1990, mas retornaremos a essa história mais tarde.

Como Dodds raramente dava as caras, na década de 1970 a DC autorizou Joe Simon e Jack Kirby, os criadores do Capitão América, a lançar um novo personagem chamado Sandman, que estrearia na revista The Sandman número 1, em janeiro de 1974. Segundo Simon, apesar de ter a aparência de um super-herói, incluindo máscara e capa, esse Sandman era o verdadeiro homem da areia das lendas, contando, inclusive, com a areia mágica que faz com que as pessoas durmam, e sua principal tarefa era proteger as crianças enquanto elas estavam dormindo, para que elas não fossem atacadas por monstros dos pesadelos. Inicialmente, The Sandman seria uma one shot, uma edição única com início, meio e fim, mas, em maio de 1975, a DC decidiria lançar uma série regular do personagem, com a numeração começando do 2, roteiros de Michael Fleisher e arte de Ernie Chua; bimestral, essa série, entretanto, não faria sucesso, e acabaria cancelada no número 6, em janeiro de 1976. Após o cancelamento, esse Sandman ainda faria um punhado de aparições em outras revistas, com destaque para The Best of DC 22, de março de 1982, na qual ele ajuda o Papai Noel a derrotar vilões insatisfeitos com os presentes que ganharam de Natal, e Wonder Woman 300, de fevereiro de 1983, na qual é revelado que Sandman não é o homem da areia, e sim um humano chamado Garrett Stanford, um professor de psicologia da Universidade da Califórnia que ficou preso na dimensão do Sonhar ao tentar salvar "um grande homem" (supostamente o Presidente dos Estados Unidos) de um monstro dos pesadelos, ganhando a habilidade de deixar o Sonhar durante uma hora por dia, para ajudar outras pessoas contra monstros semelhantes.

No final da década de 1980, Gaiman e o desenhista Dave McKean criaram uma one shot chamada Violent Cases, lançada em 1987 pela Tundra Comics, que chamou a atenção de Karen Berger, à época editora-chefe da DC. Na época, motivada pelo sucesso conseguido por Alan Moore à frente da revista do Monstro do Pântano, a DC estava procurando novos talentos para assumir alguns de seus personagens de menor sucesso lançados na década de 1970, de forma que Berger contratou a dupla para escrever uma minissérie protagonizada pela Orquídea Negra, super-heroína que havia estreado na Adventure Comics 428, em julho de 1973. Gaiman e McKean criariam uma minissérie em três edições, chamada Black Orchid, lançada entre dezembro de 1988 e fevereiro de 1989.

Ao escrever a minissérie, Gaiman planejava usar alguns personagens do Sandman de Simon e Kirby, como Bruto e Glob, dois pesadelos que ele comanda através de um apito mágico, e os irmãos Caim e Abel, que, após os eventos descritos na Bíblia, passaram a residir no Sonhar. Berger, entretanto, vetou, pois o roteirista Roy Thomas já os estava usando na revista Infinity Inc., e a DC não gostaria que os personagens tivessem duas versões conflitantes nas bancas ao mesmo tempo. Ironicamente, Infinity Inc. seria cancelada em junho de 1988, antes, portanto, do lançamento de Black Orchid; seu cancelamento e o sucesso da minissérie, porém, fariam com que Berger decidisse oferecer o Sandman a Gaiman, convidando-o a escrever uma nova série regular para o personagem. Segundo Gaiman, Berger lhe daria apenas uma condição: a DC queria um novo Sandman, de forma que ele poderia manter o nome, mas para todo o resto teria carta branca.

Gaiman aproveitaria ao máximo essa oportunidade, criando, para protagonista da revista, o personagem Sonho descrito há alguns parágrafos. O próprio Gaiman criaria a aparência do personagem, misturando a própria aparência que tinha por volta dos vinte anos de idade, inclusive com roupas semelhantes às que ele costumava usar na época, com a do cantor Robert Smith, da banda The Cure; segundo ele, essa imagem seria inspirada na primeira imagem que lhe veio à mente quando ouviu que tinha carta branca para redefinir o personagem: a de um homem jovem, extremamente pálido e extremamente magro, com longos e desgrenhados cabelos negros, nu e preso em uma pequena redoma de vidro, aguardando seus captores falecerem para então se libertar.

De fato, a revista The Sandman, cuja primeira edição seria lançada em 29 de novembro de 1988 (mas com data na capa de janeiro de 1989, por razões que só o mercado editorial norte-americano conhece), começaria com Sonho sendo capturado por um homem que realiza um ritual que visava, na verdade, capturar a Morte - também uma dos Perpétuos e irmã mais velha de Sonho - mas o capturou acidentalmente. Sem sua presença no Sonhar, várias coisas bizarras começam a acontecer ao redor do planeta. Paciente ou indiferente, não se sabe, Sonho aguarda até que seus captores morram, e, então, sem seu domínio sobre ele, se liberta. Ao retornar ao Sonhar, entretanto, ele descobre que não foi apenas na Terra que houve um desequilíbrio devido à sua ausência, e, em várias das primeiras edições, luta para restaurar a ordem em ambos os planos.

Gaiman entregaria uma sinopse das oito primeiras edições a McKean, que criaria os esboços dos personagens e os apresentaria a Berger. Berger recomendaria o desenhista Sam Kieth para a série, ficando McKean a cargo apenas das capas - que se tornariam uma das principais marcas registradas da série, já que misturavam pintura, desenho e fotografia, e raramente tinham a presença de Sonho ou dos Perpétuos. Kieth desenharia apenas as cinco primeiras edições, sendo substituído por Mike Dringenberg. Nas edições seguintes, outros desenhistas, como Chris Bachalo, Jill Thompson, Shawn McManus, Marc Hempel, Mike Allred e Michael Zulli, assumiriam a arte; Gaiman, entretanto, seria o único roteirista até a derradeira edição, e todas as capas seriam criadas por McKean.

Aos poucos, Gaiman começaria também a introduzir os demais Perpétuos na revista, começando por Morte, que estreou na edição 8. Retratada como uma mulher de uns vinte anos, também de aparência gótica, com pela alva e desgrenhados cabelos negros, um ankh (o símbolo egípcio da vida após a morte) pendurado em um cordão no pescoço e maquiagem ao redor do olho direito que lembra o Olho de Hórus (o símbolo egípcio da saúde e proteção), quase sempre vestida de preto e frequentemente carregando um guarda-chuva, Morte logo se tornaria uma das mais populares personagens da série, principalmente porque, ao contrário do esperado, estava sempre feliz, era muito simpática, e sempre dava conselhos de valor tanto a Sonho quanto àqueles com quem se encontrava - normalmente no momento de sua morte, quando era seu papel levá-los ao seu domínio. Para criar a aparência de Morte, Dringenberg se basearia em uma amiga, Cinamon Hadley. Ao mostrar seu esboço da personagem para Gaiman, ele o aprovaria imediatamente, e, ao se encontrar pessoalmente com Hadley, ele se surpreenderia com como de fato ela era parecida com a personagem - até mesmo em sua personalidade.

O segundo Perpétuo a fazer sua estreia seria Desejo, na edição 10. Sendo a personificação do desejo, cada um a(o) vê de uma forma, mas sempre como uma mulher ou homem lindíssimos, dependendo do gosto pessoal do observador; na maior parte das vezes, Desejo é retratada como uma mulher andrógina, de cabelos curtos, lindo rosto e sempre (muito bem) vestida com roupas unissex, como terninhos - também é interessante notar que os demais Perpétuos se referem a ela como "irmã", e suas falas sempre a referenciam no feminino. Desejo tem uma irmã gêmea, Desespero, que também estreou na edição 10, retratada como uma mulher baixa, obesa, nua, de cabelos longos mas sempre presos e dentes afiados. Enquanto Desejo é uma bon vivant cruel e manipuladora, e gosta de manter uma rivalidade com Sonho, Desespero é introvertida e dada à automutilação, mas extremamente centrada e inteligente, e ama a todos os seus irmãos.

Apesar de ter sido citado rapidamente (em um único quadrinho) da edição 7, o irmão mais velho de todos, Destino, só estrearia propriamente na edição 21. Retratado como um homem cego, vestido com um longo manto com capuz e acorrentado a um enorme livro que contém tudo o que já foi, é e será, Destino é o único dos Perpétuos que não foi criação de Gaiman, tendo sido criado por Marv Wolfman e Bernie Wrightson para ser o narrador das histórias da revista Weird Mystery Tales, estreando na edição 1, de agosto de 1972, e aparecendo esporadicamente em outras publicações da DC nas décadas de 1970 e 1980. Gaiman se aproveitaria de sua carta branca para não somente incorporá-lo ao "Universo Sandman", mas também para torná-lo irmão dos demais Perpétuos.

Vale citar, aliás, que, embora os Perpétuos raramente façam aparições nas demais revistas da DC, Gaiman deixou bem claro desde o início que The Sandman é ambientado no Universo DC "normal", inclusive com personagens dos demais títulos aparecendo em edições da série, como o super-herói Ajax, o vilão Espantalho (ambos na edição 5) e a Moça-Elemental (na edição 20). Frequentemente, Sonho vai ao inferno, onde encontra diversos personagens infernais que estrearam em outras revistas da DC, como Lúcifer (cuja versão de Gaiman faria tanto sucesso que ganharia uma série própria) e o demônio Etrigan. Gaiman também faria laços estreitos entre The Sandman e outra revista da DC da época considerada "para adultos", Hellblazer, protagonizada por John Constantine - uma das mais importantes personagens de The Sandman, inclusive, era sua antepassada, Lady Johanna Constantine.

Voltando aos perpétuos, a seguinte a estrear seria a mais nova de todos, Delirium, também na edição 21. Retratada como uma menina de cabelos multicoloridos e um olho de cada cor, vestida sempre com peças que não combinam entre si, e tão exótica que nem sua sombra corresponde à sua forma, Delirium alterna momentos de lucidez com de loucura absoluta, de repente começa a falar sobre algum assunto aleatório e se esquece do que estava falando, e, apesar de sua aparência inocente, em um rompante pode cometer atos de crueldade até piores que os de Desejo. Há muito tempo, ninguém se lembra quanto, Delirium se chamava Deleite e não era louca, mas jamais foi revelado na série por que a mudança ocorreu. Para criar a aparência e a personalidade de Delirium, Gaiman se inspiraria na poeta Kathy Acker e na desenhista Jill Thompson, que, aliás, desenharia as edições 40 a 49 de The Sandman, que incluíam o arco de história Vidas Breves, do qual Delirium era uma das protagonistas. Por causa da amizade de Gaiman com a cantora Tori Amos, muita gente acha que ele teria se inspirado nela para criar Delirium, mas a primeira aparição de Delirium em The Sandman ocorreria meses antes de Gaiman e Tori se conhecerem.

O último dos sete Perpétuos passaria várias edições sendo chamado apenas de "irmão", e pouco se falava sobre quem ele seria; somente em uma edição especial lançada em novembro de 1991 ele faria sua primeira aparição, mas somente na edição 41, de setembro de 1992, seria revelado quem ele é e por que estava sumido. Trata-se de Destruição, retratado como um homem enorme e musculoso de cabelos vermelhos; como o restante dos Perpétuos, sua personalidade não corresponde nem à sua aparência, nem ao que se espera de seu nome, e Destruição é doce, meigo, altruísta, conciliador e extremamente bem-humorado, não sendo raro que ele apareça gargalhando. Responsável por encerrar ciclos para que novos comecem, um dia ele ficou preocupado que a humanidade pudesse vir a destruir a si mesma e a tudo o que existe, e, não querendo tomar parte nisso, decidiu deixar sua missão de lado e viajar para ver o mundo. Cada um dos irmãos tem uma opinião diferente sobre essa atitude.


Não sei se vocês repararam, mas os nomes de quase todos os Perpétuos começam com a letra D. Em inglês, todos começam com D mesmo: Dream, Death, Desire, Despair, Destiny, Delirium e Destruction, na ordem em que os apresentei aqui. Em português, normalmente ninguém se preocupa muito com Sonho e Morte não terem nomes com D, mas às vezes, principalmente quando alguém vai falar os nomes de todos no mesmo balão, os tradutores quiseram manter a característica - e aí, resolveram chamar Sonho de Devaneio, e Morte de Desencarnação. Eu acho ambos os nomes meio ridículos, mas fazer o quê.

O sucesso de The Sandman faria com que a DC criasse um selo apenas para revistas voltadas para o público adulto, chamado Vertigo. Embora hoje The Sandman esteja tão associado ao Vertigo que muita gente ache que a série faz parte do selo desde o primeiro número, na verdade o Vertigo só foi criado em 1993, e a primeira edição de The Sandman com o selo foi a 47, de março daquele ano. Outras séries em andamento, como Hellblazer, Animal Man, Swamp Thing (do Monstro do Pântano) e Doom Patrol (da Patrulha do Destino) também receberiam o selo em suas edições de março de 1993. A primeira série regular a receber o selo Vertigo desde sua primeira edição seria Kid Eternity, de maio de 1993.

A primeira publicação nova a receber o selo Vertigo, entretanto, seria uma minissérie, um spin-off de The Sandman protagonizado por Morte, chamado Death: The High Cost of Living. Em três edições, lançadas entre março e maio de 1993, a minissérie mostra Morte vivendo como humana, algo que ela faz durante um dia a cada século. Escrita por Gaiman e ilustrada por Bachalo, a minissérie ficaria famosa por trazer, em suas capas, Tori Amos, em fotos alteradas pela arte de McKean. Três anos depois, Morte ganharia uma nova minissérie, Death: The Time of Your Life, também em três edições, lançadas entre abril e junho de 1996, novamente com roteiro de Gaiman e arte de Bachalo.

Ao todo, The Sandman teria 75 edições publicadas entre janeiro de 1989 e março de 1996, mais um especial, The Sandman: The Song of Orpheus, de novembro de 1991, que trazia a história de amor e tragédia entre Orfeu e Eurídice - sendo que, no Universo DC, Orfeu é filho de Sonho, então a história conta com coadjuvantes especiais e com um final ao estilo Gaiman. Graças a um acordo com a DC, Gaiman garantiria que ele seria o único roteirista de The Sandman, de forma que, quando ele achou por bem deixar a série, a editora não pôde contratar outro para colocar em seu lugar, tendo de permitir que ele a encerrasse. Ao longo da década de 1990, Sonho e os demais Perpétuos também apareceriam em histórias escritas por Gaiman publicadas em várias edições das revistas Vertigo Preview e Vertigo: Winter's Edge.

Gaiman também seria co-autor, junto com Matt Wagner, de Sandman Midnight Theatre, edição especial lançada em setembro de 1995, ambientada na época em que Sonho era prisioneiro na Terra, na qual Dodds viaja à Inglaterra para investigar um crime, e acaba chegando até a casa onde Sonho estava aprisionado. Essa edição era considerada um crossover entre The Sandman e Sandman Mystery Theatre, uma das séries mais aclamadas do selo Vertigo, que teve 70 edições lançadas entre abril de 1993 e fevereiro de 1999, e era protagonizada por Dodds.

Em 1999, Gaiman escreveria um romance ambientado no Universo Sandman, mas no qual Sonho pouco aparece, chamado The Sandman: The Dream Hunters. Nele, um espírito de raposa e um tanuki (espécie de guaxinim japonês, a "roupa de guaxinim" do Mario, aliás, é uma roupa de tanuki) apostam que, se um dos dois conseguir tirar um monge budista de dentro de um templo, aquele que o conseguisse passaria a ser o dono do templo. No posfácio, Gaiman diz que o romance seria uma adaptação de uma antiga lenda japonesa, mas, em 2001, confessaria ter ele mesmo inventado a história. Lançado pela DC pelo selo Vertigo, em 2009, em comemoração aos dez anos de seu lançamento, o romance seria transformado em uma minissérie em quadrinhos também lançado pelo Vertigo, com arte de P. Craig Russell, em quatro edições, lançadas entre janeiro e abril; no Brasil, essa minissérie ficaria conhecida como Sandman: Caçadores de Sonhos.

Em janeiro de 2002, a DC lançaria uma edição especial com um nome enorme, 9-11: The World’s Finest Comic Book Writers and Artists Tell Stories to Remember, com histórias de mais de duzentos roteiristas e desenhistas (incluindo até mesmo Stan Lee) que tinham a ver, real ou filosoficamente, com os atentados terroristas do 11 de Setembro de 2001. Gaiman contribuiria com uma história protagonizada (talvez muito apropriadamente) por Morte e Destruição, que conversam com um garotinho durante um passeio de roda gigante.

Em 2003, para comemorar os dez anos do selo Vertigo, Gaiman escreveria The Sandman: Endless Nights, uma edição especial lançada em setembro daquele ano com sete histórias, cada uma protagonizada por um dos Perpétuos e ilustrada por um artista diferente: Glenn Fabry, Milo Manara, Miguelanxo Prado, Frank Quitely, P. Craig Russell, Bill Sienkiewicz e Barron Storey. No Brasil, esse especial recebeu o nome de Sandman: Noites Sem Fim, o que, na verdade, é uma escorregada na tradução, já que Endless (que, de fato, significa "sem fim"), é, em inglês, o nome dos Perpétuos, de forma que o trocadilho se perdeu - mas poderia ter se mantido se o título fosse "Noites Perpétuas".

Além da série regular, do especial de Orfeu, das histórias publicadas em 9-11, Vertigo Preview e Vertigo: Winter's Edge, das duas minisséries da Morte e de The Dream Hunters, Gaiman só escreveria, até hoje, mais uma história dos Perpétuos, a minissérie The Sandman: Overture (no Brasil conhecida como Sandman: Prelúdio). Com arte de J.H. Williams III, e planejada para ser lançada em comemoração aos 25 anos do lançamento de The Sandman, a minissérie em seis edições, que originalmente seria bimestral, sofreria vários problemas de edição e distribuição, e acabaria sendo lançada entre dezembro de 2013 e novembro de 2015. Overture é ambientado antes de The Sandman número 1, e mostra um evento cósmico que enfraqueceu Sonho, permitindo que ele fosse capturado.

A DC manteria a promessa e não lançaria nenhuma história dos Perpétuos sem roteiros de Gaiman (com três exceções que veremos em breve), mas, para capitalizar sobre o sucesso de The Sandman, investiria em vários spin-offs: Destiny: A Chronicle of Deaths Foretold, minissérie protagonizada por Destino, lançada em três edições entre abril e julho de 1996, com roteiro de Alisa Kwitney e arte de Kent Williams, Michael Zulli, Scott Hampton e Rebecca Guay; The Dreaming, série regular ambientada no Sonhar e protagonizada por diversos personagens coadjuvantes de The Sandman, que teve 60 edições publicadas entre junho de 1996 e maio de 2001; Sandman Presents: Petrefax, minissérie em quatro edições publicadas entre março e junho de 2000, com roteiro de Mike Carey e arte de Steve Leialoha, protagonizada por um personagem que Gaiman criou para The Sandman 55; Lucifer, série regular de 75 edições e um especial, publicadas entre junho de 2000 e agosto de 2006; e House of Mystery, série de antologia (com histórias com começo, meio e fim a cada edição) com 42 edições e dois especiais de Halloween, publicadas entre julho de 2008 e outubro de 2011, que na primeira edição teve uma história estrelada por Caim e Abel no Sonhar, e a partir daí passou a ter outras histórias nem tão relacionadas com o Universo Sandman.

Vale fazer uns dois parágrafos em separado para The Dead Boy Detectives: originalmente, eram dois fantasmas de meninos que protagonizaram uma história em The Sandman 25, solucionando um mistério relacionado à escola em que estudavam; segundo Gaiman, sua intenção ao criar os personagens era subverter os dois tipos de literatura infanto-juvenil mais populares do Reino Unido, as histórias de detetives adolescentes e as ambientadas em colégios internos. No final de 1993, a DC decidiria fazer um grande crossover, uma história cujas partes seriam contadas em edições especiais das revistas do selo Vertigo; crossovers eram comuns na Marvel, na DC e em outras editoras de super-heróis desde a década de 1980, mas, no selo Vertigo, esse seria o primeiro e único. Gaiman seria convidado para escrever a história de abertura do crossover, e decidiria usar os Dead Boy Detectives nela; essa edição seria lançada em dezembro de 1993, com arte de Bachalo e o nome de The Children's Crusade, mesmo do crossover, e o número 1. A história prosseguiria pelas revistas Black Orchid Annual 1, Animal Man Annual 1, Swamp Thing Annual 7, Doom Patrol Annual 2, Arcana Annual 1, (cada uma com roteiro e arte dos responsáveis pelos respectivos títulos mensais) e concluiria na The Children's Crusade 2, de janeiro de 1994, com roteiro de Kwitney e arte de Peter Snejbjerg.

Depois desse crossover, os Dead Boy Detectives ainda retornariam mais três vezes: na minissérie Sandman Presents: The Dead Boy Detectives, em quatro edições lançadas entre agosto e novembro de 2001, com roteiro de Ed Brubaker e arte de Bryan Talbot; The Dead Boy Detectives, edição especial em estilo mangá escrita e desenhada por Jill Thompson, que contava com a participação especial de Morte e foi lançada em fevereiro de 2005; e Dead Boy Detectives, série regular em 12 edições lançadas entre março de 2014 e fevereiro de 2015, com roteiro de Toby Litt e arte de Mark Buckingham.

Para terminar, falta falar sobre as três exceções: com a autorização de Gaiman, Jill Thompson escreveria e desenharia três edições especiais protagonizadas pelos Perpétuos (além de incluir Morte em The Dead Boy Detectives); uma delas era Death: At Death's Door, em estilo mangá e protagonizada por Morte, que seria lançada em maio de 2003, mas são as outras duas que merecem destaque: The Little Endless Storybook (no Brasil, Os Pequenos Perpétuos) é protagonizado por versões infantis dos sete Perpétuos, e, em seu enredo, Delirium sumiu e cabe ao cachorro de Destruição, Barnabas, encontrá-la. A inspiração de Thompson para esse especial viria da primeira história que ela desenhou para The Sandman, na edição 40, na qual Abel conta uma história (que pode ou não ser verdadeira) da época em que Sonho e Morte eram crianças. The Little Endless Storybook seria lançado em junho de 2001; em maio de 2011, para comemorar os dez anos de seu lançamento, Thompson escreveria e desenharia uma segunda edição protagonizada pelos Pequenos Perpétuos, Delirium's Party (A Festa da Delirium), na qual Delirium organiza uma festa para que Desespero deixe de ser tão triste.
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segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Escrito por em 5.10.15 com 2 comentários

Neil Gaiman

De vez em quando, eu me surpreendo com o fato de que, mesmo já estando chegando aos 650 posts, eu ainda acho um assunto ou outro do qual eu gosto muito e jamais falei. Hoje, por exemplo, me dei conta de que nunca falei sobre Neil Gaiman, um dos meus autores preferidos. Antes tarde do que nunca, eu acho.

Neil Richard Gaiman nasceu na pequena cidade de Portchester, Inglaterra, em 10 de novembro de 1960. Sua família descende de judeus poloneses, e se estabeleceu na Inglaterra por volta de 1914, quando seu bisavô, nascido na Bélgica, decidiu imigrar para lá. Seu pai era dono de uma loja de doces, que herdou de seu avô, e sua mãe, também de família judia, era farmacêutica. Além de judeus, os pais de Gaiman eram adeptos da cientologia (hoje talvez mais conhecida como "a religião do Tom Cruise"), e, por isso, quando Gaiman tinha 5 anos de idade, a família, que também incluía suas duas irmãs mais novas, se mudaria para uma cidade um pouco maior, East Grinstead, onde seus pais poderiam estudar e trabalhar no centro de cientologia local.

Gaiman aprendeu a ler com quatro anos de idade, e, desde cedo, demonstrou grande interesse e apreço pela leitura. Aos sete anos, ele ganharia de presente a coleção completa de As Crônicas de Nárnia, e seria através de sua leitura que ele decidiria se tornar, também, um autor. Outros de seus livros preferidos na infância eram Alice no País das Maravilhas, que leu até decorar todo o texto, e O Senhor dos Anéis, que leu aos dez anos, alugado da biblioteca da escola, que, infelizmente, só possuía os dois primeiros volumes. Curioso para saber como a história terminava, ele pegaria um pequeno dinheiro que ganharia por ser o melhor aluno da escola em língua inglesa e compraria o terceiro.

Após terminar a escola, sem saber como fazer para se tornar um autor, Gaiman decidiria estudar jornalismo, se especializando em crítica literária, segundo ele, para aprender como funcionava o mundo dos livros. Aos 19 anos, ele também escreveria uma carta para seu autor favorito, R.A. Lafferty, especializado em ficção científica, pedindo dicas sobre como se tornar um autor bem sucedido, e incluindo um conto ao estilo de Lafferty que havia escrito. Lafferty responderia pessoalmente, o encorajando a seguir carreira e incluindo, de fato, várias dicas sobre como fazê-lo.

Gaiman começaria sua carreira naquele mesmo ano, enviando contos para várias revistas de fantasia e ficção científica; a primeira a ser publicada seria Featherquest, na edição de maio de 1984 da Imagine Magazine. Ainda em 1984, ele escreveria seus dois primeiros livros, ambos de não-ficção: uma biografia não-autorizada da banda Duran Duran e um livro de citações, Ghastly Beyond Belief (algo como "tão medonho que você não vai acreditar"), escrito em parceria com Kim Newman. Gaiman não gostaria de seu trabalho em Ghastly Beyond Belief, acreditando que tinha sido relaxado na escolha e na arrumação das citações, mas o livro seria um grande sucesso, com a primeira tiragem se esgotando rapidamente. Infelizmente, quando foi buscar seus direitos autorais, ele descobriria que a editora havia falido, e jamais receberia um tostão além do adiantamento para escrever o livro.

O trabalho de Gaiman nesses dois livros, porém, chamaria a atenção de duas revistas de grande circulação, que o convidariam para ser colaborador regular: a Penthouse, espécie de rival da Playboy, mas com as mulheres se deixando fotografar em poses mais explícitas, da qual o convite ele não aceitou; e a Knave, também voltada para o público adulto, mas com mais contos e entrevistas que ensaios fotográficos. Gaiman trabalharia para a Knave durante quatro anos, e sairia justamente porque a revista, após uma mudança de editor, decidiria investir mais em conteúdo pornográfico, ficando até mais pesada que a Penthouse. Entretanto, graças ao trabalho na Knave, onde escrevia usando o pseudônimo Richard Grey, ele conseguiria que seus contos e artigos fossem publicados em diversas outras revistas publicadas em todo o Reino Unido, nas quais usava diferentes pseudônimos.

No final dos anos 1980, Gaiman escreveria Don't Panic: The Official Hitchhiker's Guide to the Galaxy Companion, título publicado em janeiro de 1988 pela Simon & Schuester, que era uma espécie de manual para a leitura da série O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams. Em seguida, ele escreveria Boas Maldições, livro de comédia publicado em 1990 sobre um anjo e um demônio que se unem para tentar evitar o fim do mundo, em parceria com Terry Pratchett, criador da série Discworld e um dos mais famosos autores britânicos de fantasia, de quem era amigo desde 1985. Boas Maldições seria o trabalho mais famoso de Gaiman até então, indicado para o World Fantasy Award e para o Locus Award de Melhor Romance de 1991, sem ganhar, infelizmente, nenhum dos dois prêmios.

Ao longo das décadas de 1980 e 1990, porém, o nome de Gaiman seria muito mais associado à indústria dos quadrinhos do que aos livros. Gaiman já gostava de quadrinhos na infância, tendo como preferidos os do Batman, mas seria fisgado de vez pelo meio quando, em 1984, enquanto esperava por um trem na Victoria Station de Londres, encontraria abandonada uma edição da Swamp Thing (Monstro do Pântano), escrita por Alan Moore. O estilo de Moore, de abordagem séria e detalhista, diferente dos quadrinhos com os quais Gaiman estava acostumado, o impressionaria tanto que ele decidiria escrever para o autor. Nos anos seguintes, após Gaiman começar sua carreira nas revistas, os dois se tornariam amigos.

Gaiman também começaria a procurar emprego em editoras de quadrinhos, e acabaria contratado pela 2000 AD (a editora de Judge Dredd) para escrever algumas tiras, ao estilo das de jornal, para a série Future Shocks, em 1986 e 1987. Seu trabalho agradaria, e ele seria chamado para escrever uma das histórias da Judge Dredd Annual '88, além de conseguir emprego como roteirista em outra editora, a Knockabout. Entre 1987 e 1988, tanto para a Knockabout quanto para a 2000 AD, Gaiman escreveria várias graphic novels e one-shots (histórias com início, meio e fim, que não fazem parte de uma série regular), a maioria em parceria com outros roteiristas, dentre elas Violent Cases, ilustrada por Dave McKean.

Violent Cases chamaria a atenção de Karen Berger, então editora-chefe da DC Comics, que contrataria Gaiman e McKean para escrever a minissérie Black Orchid, publicada em 1988. Na época, motivada pelo sucesso de Alan Moore à frente do Monstro do Pântano, personagem originalmente criado por Len Wein em 1972, a DC pensava em relançar mais de seus personagens da década de 1970. Gaiman queria o Sandman, super-herói criado por Joe Simon e Jack Kirby, criadores do Capitão América, que vivia no mundo dos sonhos e protegia as crianças de pesadelos, mas Berger deu a ele a Orquídea Negra, uma mestra dos disfarces que vivia histórias no estilo detetive. Com o sucesso de Black Orchid, porém, Berger não somente permitiria que Gaiman assumisse o Sandman como também pediria para que ele não o fizesse igual ao que era antes, dando seu próprio estilo ao personagem.

Talvez Gaiman tenha exagerado, pois seu Sandman não tem absolutamente nada a ver com o de Simon e Kirby, sendo uma personificação antropomórfica do Sonho, um ser imortal conhecido ao longo dos anos e das culturas por muitos nomes, incluindo o famoso Morfeu. Lançada em janeiro de 1989, Sandman era uma mistura de fantasia, horror e humor jamais vista nos quadrinhos, e logo se tornaria um imenso sucesso, chegando a ser, durante a década de 1990, o título mais vendido da DC, à frente até mesmo de Batman e Superman.

Sandman seria publicado até março de 1996, contando com 75 edições - em respeito a Gaiman, a DC determinaria que nenhum outro roteirista assumisse o título - e levaria Gaiman ao estrelato: se hoje todo nerd do planeta conhece seu nome, é por culpa dessa série. Além disso, o título motivaria a criação de um selo da DC próprio para histórias de teor mais adulto, que não tinham espaço nos títulos regulares da editora. Chamado Vertigo, esse selo abrangeria, além de Sandman, sucessos como Hellblazer (a série estrelada por John Constantine), Preacher, Swamp Thing e The Books of Magic (Os Livros da Magia), série criada por Gaiman protagonizada por um menino inglês destinado a se tornar o maior mago da história. Além das séries regulares, o selo Vertigo estamparia a capa de várias minisséries, dentre elas a que o inaugurou, em março de 1993: Death: The High Cost of Living, protagonizada pela Morte, irmã mais velha de Morfeu, que estrearia na edição 8 de Sandman e logo se tornaria um dos personagens mais populares da DC.

Em 1990, Gaiman seria convidado por Moore para assumir Miracleman, título da Eclipse Comics que o próprio Moore havia revitalizado. Gaiman ficaria à fente do título até 1992, quando a Eclipse fecharia as portas. Em 1993, Gaiman seria convidado por Todd McFarlane para escrever a edição 9 de Spawn, para a qual ele criaria três personagens: Angela, Cogliostro e o Spawn Medieval. Esses três personagens seriam motivo de uma longa desavença entre Gaiman e McFarlane, pois McFarlane os usaria em várias outras histórias sem pagar nenhum direito autoral a Gaiman, alegando que, como eles não tinham acordo nenhum nesse sentido, os personagens o pertenciam para usar como quisesse. Gaiman recorreu à justiça, que entendeu diferente, e não somente lhe deu a propriedade dos três personagens como também ordenou que McFarlane pagasse direitos autorais toda vez que usasse outros três personagens, Tiffany, Domina e o Spawn da Idade das Trevas, considerados claramente plágio dos criados por Gaiman. Após recuperar a propriedade dos personagens, Gaiman decidiria vender Angela para a Marvel, que a introduziria em seu universo como uma irmã há muito perdida de Thor.

A decisão de Gaiman de vender Angela para a Marvel seria uma forma de agradecimento por ela tê-lo ajudado em outra questão: quando Miracleman foi cancelado, uma das histórias de Gaiman ficaria sem conclusão. Ele tentaria comprar os direitos do personagem para concluí-la, mas quem os acabaria comprando seria McFarlane, que, por causa da confusão com os personagens de Spawn, jamais voltaria a publicar Miracleman - e, por conseguinte, jamais deixaria Gaiman concluir sua história. Gaiman chegaria a usar todo o seu pagamento pelo roteiro de uma minissérie que escreveu para a Marvel, 1602, para fundar uma empresa, a Marvels & Miracles (nome motivado pelo fato de que o nome original de Miracleman, antes da Eclipse decidir mudar para não criar confusão com a Marvel, era Marvelman), voltada unicamente para tentar conseguir adquirir os direitos de Miracleman.

Seria a Marvel, porém, quem conseguiria ficar com os direitos, e devido a um detalhe técnico: em 2009, a Marvel descobriria que a Quality Communications, de quem McFarlane havia comprado os direitos de Miracleman, não os havia adquirido do criador do personagem, Mick Anglo, e sim da massa falida da Eclipse, que não era detentora desses direitos e, portanto, não podia vendê-los. A Marvel compraria os direitos de Anglo (que faleceria dois anos depois, em 2011, aos 95 anos) e conseguiria na justiça a anulação da venda para a Quality - e consequentemente, para McFarlane. Incorporando Miracleman a seu universo, a Marvel começaria a republicar suas histórias em janeiro de 2014, e a publicar material inédito em setembro - incluindo uma história escrita por Grant Morrison e jamais publicada em 1980, e, é lógico, a conclusão da história de Gaiman. Desnecessário dizer, enquanto esse episódio ajudou a estreitar a relação de Gaiman com a Marvel, ele azedou de vez sua relação com McFarlane.

Antes da Marvel comprar os direitos de Miracleman, Gaiman já havia feito duas bem sucedidas parcerias com a Casa das Ideias: além de 1602, aclamada minissérie em 8 edições publicada em 2003, que mostra como seria o mundo se os personagens clássicos da Marvel tivessem surgido na Era Elizabetana ao invés de na década de 1960, ele escreveria Eternals, minissérie em 7 edições de 2006 na qual recriaria os Eternos, personagens superpoderosos criados em 1976 por Jack Kirby, mas que, com algumas poucas exceções - como Sersi, que chegou a fazer parte dos Vingadores - estavam esquecidos desde a década de 1980.

Voltando um pouco para antes dessa confusão toda, em 1996 Gaiman criaria uma série de TV, Neverwhere, na qual, abaixo de Londres, existe uma dimensão paralela chamada Londres-de-Baixo, onde coexistem pessoas de várias épocas e seres místicos com poderes mágicos. Invisível e inalcançável para os cidadãos comuns, a dimensão é descoberta por Richard Mayhew (Gary Bakewell), ao ajudar Door (Laura Fraser), jovem oriunda de Londres-de-Baixo que está perdida na nossa dimensão. Preso na dimensão paralela, Richard tenta encontrar uma saída ao mesmo tempo em que deve proteger Door, filha de uma aristocrática família de Londres-de-Baixo, de assassinos de aluguel enviados para matá-la. Neverwhere seria exibida pela BBC Two, e teria um total de 6 episódios, exibidos entre 12 de setembro e 17 de outubro de 1996. Outros trabalhos de Gaiman como roteirista de TV e cinema além de Neverwhere incluem um episódio da quinta temporada de Babylon 5, de 1998; um da sexta e um da sétima temporadas de Doctor Who, de 2011 e 2013 respectivamente; e o roteiro do filme Beowulf, de Robert Zemeckis, de 2007, escrito em parceria com Roger Avary.

A história de Neverwhere, com algumas diferenças, ganharia uma versão em livro (lançada no Brasil com o nome de Lugar Nenhum), lançado na Inglaterra em 16 de setembro de 1996 pela BBC Books, e que seria o primeiro romance de ficção escrito somente por Gaiman. Esse livro acabaria ganhando duas edições subsequentes, com algumas alterações no texto feitas pelo próprio Gaiman. A primeira dessas edições seria lançada ainda em 1996, e voltada para os leitores norte-americanos, que não estão acostumados com o intrincado metrô de Londres, que possui uma rede extremamente complexa; as alterações, portanto, visavam explicar ou simplificar elementos do metrô presentes na narrativa. A segunda versão seria lançada em 2006, com o subtítulo de Author's Preferred Text ("texto preferido pelo autor"), e trazia alterações em várias passagens com as quais Gaiman havia ficado insatisfeito quando da publicação do livro original.

Em 1997, Gaiman lançaria, pela DC, com ilustrações de Charles Vess, Stardust, uma minissérie em 4 edições que conta a história de um jovem camponês que encontra uma passagem mágica para uma terra de fantasia e acaba se apaixonando por uma estrela cadente em forma de mulher. Stardust (que, no Brasil, ganhou o subtítulo O Mistério da Estrela), porém, não era uma história em quadrinhos, e sim semelhante a um livro infantil, com belas ilustrações de página inteira acompanhando os fragmentos do texto. Gaiman e Vess haviam criado o projeto para ser publicado como uma edição única, e não ficaram satisfeitos com o resultado obtido pela minissérie; após muito insistir, eles conseguiriam que a DC publicasse um volume único em 1998. Ainda empolgado com a história, Gaiman decidiria ampliar o texto e lançá-lo como seu segundo romance, em 1999, pela Avon Books. Stardust também ganharia uma versão cinematográfica, lançada em 2007 e contando com Claire Danes, Michelle Pfeiffer e Robert De Niro no elenco.

1997 também seria o ano em que Gaiman lançaria seu primeiro livro infantil, O Dia em que Troquei meu Pai por Dois Peixinhos Dourados, ilustrado por Dave McKean e publicado pela editora White Wolf (dos RPGs Vampire e Werewolf). Ao longo dos anos seguintes, Gaiman publicaria outros 12 livros infantis, sempre ilustrados por artistas consagrados como Charles Vess e Chris Ridell, incluindo os aclamados Os Lobos Dentro das Paredes e Menina Iluminada, além de versões "ao estilo Gaiman" de João e Maria e A Bela Adormecida (esse último chamado The Sleeper and the Spindle, ainda sem título em português).

O terceiro romance de Gaiman, Deuses Americanos, lida com a premissa de que deuses e criaturas mitológicas só existem se alguém acreditar neles, e acompanha um misterioso personagem durante uma viagem pelos Estados Unidos, durante a qual será revelado que os deuses da América de hoje representam facetas da fama, tecnologia e do dinheiro, dentre outros componentes da sociedade moderna. Lançado em junho de 2001 pela editora Headline, Deuses Americanos ganharia os dois mais importantes prêmios da literatura de ficção científica e fantasia, o Hugo Awards e o Nebula Awards. Assim como Lugar Nenhum, ele ganharia uma versão Author's Preferred Text, com modificações e adendos, lançada na Inglaterra em 2003 e no restante do mundo (como "edição especial") em 2011. Em 2014, o canal Starz anunciaria ter conseguido os direitos para transformar o livro em uma série, ainda sem data de estreia definida.

Após Deuses Americanos, Gaiman escreveria mais um livro com ilustrações de McKean, chamado Coraline. Voltado para o público infanto-juvenil, o livro mistura elementos de fantasia e terror, e acompanha uma menina de nome Coraline que se muda para uma casa enorme e antiga, e lá descobre uma porta secreta que é a passagem para um mundo paralelo. Lançado em janeiro de 2002 pela editora Bloomsbury, Coraline seria aclamado pelos críticos, que o comparariam com Alice no País das Maravilhas, e ganharia mais um Hugo. O livro seria adaptado para um filme, filmado com a técnica de stop motion (na qual bonecos são fotografados quadro a quadro, dando a impressão de que estão em movimento) e lançado em 2009 (aqui no Brasil como Coraline e o Mundo Secreto).

Em setembro de 2005, seria lançado, pela editora Morrow, Os Filhos de Anansi, livro ligado à história de Deuses Americanos. Nele, o deus Anansi morre, deixando dois filhos - um semideus, outro humano - que se conhecem no funeral e passam um tempo juntos para aprender mais sobre seu pai e sobre si mesmos. Os Filhos de Anansi estrearia no primeiro lugar da lista de best-sellers do The New York Times, e poderia ter ganhado mais um Hugo, ao qual só não concorreu porque Gaiman pediu, alegando que já tinha três, e preferia dar chance a novos autores (para quem não sabe, os vencedores do Hugo são determinados por votação popular, então um nome forte como o de Gaiman tem mais chances de ganhar que o de um novato).

Em 2007, Gaiman co-escreveria com Michael Reeves Entremundos, romance de ficção científica voltado para o público juvenil protagonizado pelo adolescente Joey, que, junto com diversos outros Joeys de várias Terras paralelas, tem de impedir as personificações da Magia (conhecida como Hex) e da ciência (conhecida como Binária) de conquistar todos os universos paralelos que existem. Lançado em junho pela editora EOS, Entremundos teria duas continuações, Sonho de Prata, de abril de 2013, no qual Joey enfrenta uma rival enquanto tenta se firmar na organização multidimensional Entremundos; e Eternity's Wheel (ainda sem título em português), de maio de 2015, no qual Joey assume o comando da Entremundos para enfrentar um inimigo imensamente poderoso. Ambas as continuações seriam escritas por Gaiman, Michael Reeves e Mallory Reeves, filha de Michael, e publicadas pela HarperTeen, uma subsidiária da Harper Collins.

Em 2008, Gaiman lançaria mais um livro voltado para o público infanto-juvenil, O Livro do Cemitério, que conta a história de Ninguém Owens, apelido Nin, que, após sua família ser brutalmente assassinada, é criado pelos fantasmas de um cemitério, que o ensinam sobre o perdão, a compaixão e a ética. Inspirado em O Livro da Selva, de Rudyard Kipling (mais conhecido como "o livro do Mogli"), O Livro do Cemitério seria lançado em setembro, simultaneamente pela Bloomsbury no Reino Unido e pela Harper Collins nos Estados Unidos, e renderia a Gaiman mais um Hugo, além da Carnegie Medal, mais importante honraria concedida aos autores de livros infanto-juvenis no Reino Unido.

O último romance solo de Gaiman, por enquanto, é O Oceano no Fim do Caminho, lançado pela William Morrow em junho de 2013. Seu protagonista é um homem sem nome, que, ao retornar a sua cidade natal para comparecer ao funeral de seu pai, se vê relembrando e revisitando fatos de sua infância e juventude. O livro, bem recebido pela crítica, aborda temas como a autopercepção da própria identidade e as coisas que perdemos na transição da infância para a vida adulta.

Além dos romances, Gaiman já escreveu vários contos, publicados ao longo dos anos em revistas, online ou em antologias compostas por contos de vários autores. Dentre esses contos podemos destacar A Study in Emerald, inspirado pelas histórias de Sherlock Holmes e responsável pelo terceiro Hugo da carreira de Gaiman, em 2004; I Cthulhu, baseado nas obras de Lovecraft; e The Monarch of the Glen, ambientado na Escócia e protagonizado pelo mesmo protagonista de Deuses Americanos.

Gaiman se casaria duas vezes, a primeira em 1985 com Mary McGrath, que estudava cientologia com seus pais. O casamento durou até 2007 e rendeu três filhos, Michael, Holly e Maddie - os filhos, aliás, foram uma das razões pelas quais eles se casaram, já que Mary engravidou de Michael quando eles ainda namoravam. Em 2011, Gaiman se casaria com a cantora, compositora e autora Amanda Palmer, com quem teria mais um filho, Anthony.

Para terminar, vale citar que Gaiman é amigo íntimo de Tori Amos. Os dois se conheceram por acaso, em 1991, na época em que ela morava na Inglaterra; ela era fã de Sandman e havia citado Gaiman em uma das músicas que havia colocado em sua fita demo, ele adorou a homenagem e os dois passaram a se corresponder, dando início à amizade. Tori faz referências a Gaiman em várias de suas músicas, como Tear in Your Hand (a tal da fita demo, no trecho "se você precisar de mim, eu e Neil estaremos por aí com o Rei dos Sonhos"), Spacedog ("onde está Neil quando você precisa dele?") e Carbon ("coloque Neil no telefone, não, eu não posso aguardar"), dentre outras. Por sua vez, ele fez um personagem de Stardust em homenagem a ela, uma árvore falante (referenciada em outra música de Tori, Horses, no trecho "mas você me encontraria se Neil me transformasse em uma árvore?"), escreveu contos que foram incluídos nos livretos das turnês de Boys for Pele e Scarlet's Walk, e um conto para cada uma das personagens de Strange Little Girls. Gaiman é padrinho de Tash, a filha de Tori, e escreveu Menina Iluminada em homenagem à afilhada.

Tori Amos também acabaria, de certa forma, ligada ao universo de Sandman: além de criar uma música, Sister Named Desire, cheia de referências a este universo - já que Desire, Desejo, é mais uma das irmãs de Morfeu - ela escreveria a introdução da edição encadernada de Death: The High Cost of Living e posaria para a capa, que tem arte de Dave McKean sobre sua foto. Além disso, por alguma razão, a imagem de Tori, com seus cabelos vermelhos e sorriso largo, seria associada pelos fãs a outra das irmãs de Morfeu, Delirium, ao ponto de muitos fãs acharem que ele criou a personagem em sua homenagem - o que não é verdade, já que Delirium seria criada anos antes de Gaiman conhecer Tori, e, segundo o autor, seria inspirada na autora Kathy Acker e na desenhista Jill Thompson, ambas também ruivas. A associação de Tori com Delirium é tão grande, porém, que, na década de 1990, quando começou a se falar na produção de um filme de Sandman, Tori era a mais cotada para interpretar a personagem.
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